dezembro 29, 2025

Manifesto Contra a Europa (ou Como um Continente Aprendeu a Expulsar Sem Sujar as Mãos)

 


A Europa gosta de se imaginar como ideia. Como abstração nobre. Como herança. Ela se vende como continente do pensamento, da arte, da razão, da tolerância conquistada a duras penas depois de guerras que ela mesma inventou. Mas a Europa real não é ideia alguma. A Europa real é um corpo velho, cansado, rancoroso, que aprendeu a sobreviver sugando o outro enquanto posa para fotografias humanistas. Ela não precisa mais de colônias formais, porque descobriu algo mais eficiente: transformar o estrangeiro em um erro administrativo, em um problema contábil, em um corpo excedente.

Eu cheguei à Europa acreditando que preparo era armadura. Acreditei que estudar, falar línguas, compreender códigos culturais e respeitar regras seria suficiente. A Europa se encarregou de me ensinar que nada disso importa quando o seu local de nascimento denuncia que você veio do lado errado do mundo. Não importa o quanto você saiba, produza, contribua ou ame. O passaporte cultural europeu é genético, histórico e, acima de tudo, excludente.

Em Londres, ainda jovem, fui iniciado nesse ritual de expulsão simbólica. Não era apenas estudar inglês. Era aprender onde eu estava pisando. O cuspe em Baker Street não foi um episódio isolado, foi um gesto arquetípico. Um velho sentado, imóvel, como se fosse a própria Inglaterra fossilizada, decidiu que meu corpo precisava ser lembrado de sua posição. Ele não me conhecia. Não sabia meu nome, minha história, minha formação. Não precisava. Bastava perceber que eu era estrangeiro. Bastava imaginar que eu vinha de algum lugar abaixo do mapa mental europeu. Bastava isso para cuspir.

Naquele momento, a Inglaterra falou sem sotaque. Falou a língua que nunca aparece nos folhetos das escolas de intercâmbio. Falou com saliva, com desprezo, com séculos de superioridade internalizada. Eu era o exótico. O curioso. O corpo que entretém enquanto não exige espaço. Aquele que pode ser tolerado desde que não reivindique igualdade.

Havia professores gentis, é verdade. Havia exceções humanas, porque indivíduos ainda conseguem ser melhores do que os sistemas que os produzem. Mas a estrutura estava ali, intacta, sólida, silenciosa. A estrutura que decide quem pertence e quem apenas circula. A estrutura que permite ao europeu dizer que não é racista enquanto pratica exclusão cotidiana com precisão cirúrgica.

Na Islândia, a exclusão veio polida de gelo. Não havia grito, não havia cuspe. Havia a certeza absoluta de que o estrangeiro jamais atravessaria a fronteira invisível da pertença. A Islândia tolera o outro como se tolera o turismo: como algo temporário, lucrativo e descartável. O islandês se orgulha de sua genealogia como se fosse um certificado moral. Quem não compartilha daquele sangue é condenado a orbitar eternamente em torno da sociedade, sem jamais tocá-la.

Aprender a língua não abriu portas. Trabalhar não criou raízes. Fazer amigos não gerou inclusão. Quando os islandeses se reuniam, fechavam o círculo. O idioma virava muralha. O riso virava senha. O estrangeiro permanecia do lado de fora, mesmo estando fisicamente presente. É um tipo de exclusão sofisticada, quase elegante. Mas não menos violenta. Porque o isolamento constante corrói mais do que o ataque direto.

Portugal foi o capítulo mais perverso porque se disfarçou de acolhimento. Usou a língua como anestésico. Usou a falsa ideia de irmandade como armadilha. Portugal não superou o colonialismo. Ele apenas mudou o método. Hoje, não precisa mais enviar navios. Basta criar sistemas tributários opacos e oferecer “ajuda especializada” a brasileiros que ousam investir ali.

Levei uma empresa sólida, respeitada internacionalmente. Não cheguei pedindo emprego. Cheguei oferecendo trabalho, rede, dinheiro, visibilidade. E fui tratado como presa. A contabilidade portuguesa não errou. Ela executou. Sabia exatamente o que esconder, o que prometer, o que revelar tarde demais. O sistema funciona assim porque foi desenhado assim. Ele depende da ignorância do estrangeiro. Ele lucra com a confiança do brasileiro.

As Finanças portuguesas não funcionam sem um padrinho. Não funcionam sem alguém que legitime sua existência naquele território. É um feudalismo moderno, travestido de burocracia europeia. O tratamento no sistema de saúde revelou o que Portugal pensa do estrangeiro quando ele deixa de ser útil. Um corpo nu na rua não é descuido. É mensagem. É recado. É pedagogia do desprezo.

Os portugueses gostam de repetir que fazem favores aos brasileiros. É uma inversão moral grotesca. Foram séculos sugando recursos, pessoas, culturas. E hoje exigem gratidão por tolerar a presença daqueles que ajudaram a construir sua própria história. A frase “volte para o seu país” não é raiva momentânea. É política cultural internalizada.

Na Itália, a máscara caiu de vez. A pandemia não criou o autoritarismo europeu. Ela apenas o revelou sem maquiagem. O controle policial constante, a humilhação administrativa, a corrupção banalizada, o suborno tratado como procedimento normal. Tudo isso convivendo com discursos oficiais sobre direitos, democracia e civilização.

Meu marido foi demitido por ser gay. Não por incompetência. Não por crise econômica. Por existir. A Europa que se vende como bastião da diversidade ainda pune a diferença quando ela ameaça o conforto moral das províncias. A tolerância europeia é cenográfica. Ela funciona bem em capitais turísticas. Morre nos bastidores da vida real.

Viver sem documentos, sem trabalho, sem perspectiva, é uma forma lenta de morte. Dormir com medo, passar fome, negociar existência com funcionários públicos corruptos. Isso não é exceção. Isso é o funcionamento normal de um sistema que decide quem merece permanecer e quem deve desaparecer silenciosamente.

Quando deixei a Europa, não estava derrotado. Estava esgotado. Como alguém que finalmente entende que insistir é suicídio. Ao chegar ao Brasil, fui tratado como ser humano. Ouvido. Reconhecido. A frase “bem-vindo de volta” valeu mais do que qualquer tratado europeu sobre direitos humanos.

A Europa não é intolerante por acidente. Ela é estruturalmente excludente. Ela se alimenta da ilusão de quem acredita que pode atravessar suas fronteiras simbólicas com esforço individual. Não pode. A Europa não perdoa origem. Não esquece passaporte. Não aceita quem não nasceu no lugar certo.

O erro não foi ir.
O erro foi acreditar.

A Europa é um continente que sobrevive da própria propaganda. E quem compra essa ideia paga com a própria vida emocional, financeira e psicológica.

Eu não saí da Europa expulso por decreto.
Saí porque ela me esmagou até que partir fosse o único gesto possível.

E sobreviver, às vezes, é simplesmente saber quando ir embora.