Existe uma mentira que a Europa repete para o mundo como um mantra civilizatório: a de que é o continente da tolerância, dos direitos humanos, do progresso moral e da liberdade individual. Essa narrativa é exportada com eficiência, adornada por discursos oficiais, universidades, ONGs, relatórios internacionais e uma estética cuidadosamente polida. Mas há uma realidade subterrânea, violenta e hipócrita que raramente aparece nos panfletos turísticos ou nos discursos diplomáticos. Eu vivi essa realidade. E sobrevivi a ela.
Sou brasileiro, cristão, homossexual. Vivi, trabalhei e tentei construir uma vida em diferentes países europeus. Não cheguei como aventureiro inconsequente, nem como alguém em busca de favores. Cheguei com formação, com recursos, com empresa, com casamento, com projetos. E saí expurgado. Não por incompetência. Não por falta de adaptação. Mas porque a Europa, por trás de sua máscara iluminista, não sabe lidar com a diferença quando ela não lhe convém.
Durante a pandemia de Covid-19, eu e meu marido perdemos empregos na Itália não por crise econômica apenas, mas porque éramos dois homens casados. Isso não foi velado. Foi explícito. Humilhações, isolamento, comentários, exclusão deliberada. Em um continente que se proclama defensor da diversidade, fomos tratados como corpos indesejáveis. A mensagem era clara: vocês não pertencem a este lugar.
A Itália, em especial, revelou seu lado mais cru. Um país que se diz berço do direito, da civilização ocidental, da cultura humanista, mas que na prática tolera o preconceito, normaliza a corrupção cotidiana, institucionaliza o suborno e fecha os olhos para discriminações explícitas. Fomos jogados de cidade em cidade, de subemprego em subemprego, enquanto o Estado nos tratava como um incômodo administrativo. A pandemia serviu como desculpa perfeita para negar documentos, bloquear direitos e empurrar estrangeiros para a invisibilidade.
Mas não foi apenas a homofobia local. Foi algo maior, mais estrutural, mais perigoso.
A Europa contemporânea desenvolveu uma relação doentia com o extremismo religioso. Em nome de uma tolerância mal compreendida, governos europeus passaram a relativizar ideologias que negam princípios básicos do Iluminismo, como a igualdade perante a lei, a liberdade individual, a laicidade do Estado e o direito à vida. O problema não é a fé privada de ninguém. O problema é quando doutrinas religiosas são transformadas em projetos políticos, exigindo submissão, silêncio e obediência.
Fui cuspido. Fui xingado. Fui ameaçado. Eu e meu marido ouvimos, em solo europeu, que deveríamos “voltar para nosso país”, que não éramos bem-vindos, que nossa existência era ofensiva. Ouvi discursos que defendiam regras religiosas incompatíveis com qualquer sociedade democrática. Em mais de uma ocasião, fui confrontado por pessoas que afirmavam, sem constrangimento, que homossexuais deveriam ser punidos, excluídos ou eliminados. Isso não é diversidade. Isso é barbárie travestida de relativismo cultural.
O que torna tudo ainda mais perverso é o silêncio cúmplice das instituições. A Europa não apenas falhou em nos proteger — ela nos abandonou. Preferiu proteger narrativas políticas, acordos eleitorais, zonas de conforto ideológico. Preferiu apontar o dedo para quem denuncia, em vez de enfrentar o problema. Quem questiona o extremismo é rapidamente rotulado. Quem sofre violência é convidado a “compreender o contexto”.
Não. Não há contexto que justifique a negação do direito de existir.
Defender que ninguém deve ser morto, perseguido ou excluído por sua orientação sexual não é extremismo. É o mínimo ético. Defender que nenhuma religião pode impor pena de morte, punição corporal ou exclusão civil não é intolerância. É civilização.
Sou cristão. E justamente por isso não aceito o ódio. O cristianismo que sigo não prega a morte do outro, não exige submissão pelo medo, não transforma a fé em instrumento de poder político. “Amar ao próximo” não é um slogan decorativo. É um princípio inegociável. E é exatamente isso que foi violado repetidas vezes na Europa.
É irônico, quase trágico, que eu tenha encontrado mais acolhimento, mais humanidade e mais proteção no Brasil — um país rotulado como “terceiro mundo” — do que na União Europeia. Aqui, em Curitiba, convivo com pessoas de diferentes religiões sem ser ameaçado por existir. Aqui, não sou obrigado a pedir desculpas por ser quem sou. Aqui, o Estado não me trata como um problema a ser empurrado para fora.
A Europa se divorciou de seus próprios valores. E esse divórcio destruiu o meu casamento, minha estabilidade, minha saúde emocional. Não foi apenas uma mudança geográfica. Foi uma experiência de desumanização.
Este texto não é um pedido de piedade. É um alerta. É um registro histórico. É um manifesto pelo direito de existir.
Nenhuma sociedade que relativiza a vida humana em nome de ideologias religiosas pode se dizer civilizada. Nenhum governo que tolera discursos de morte pode se dizer progressista. Nenhum continente que expulsa pessoas por serem quem são pode se proclamar exemplo moral para o mundo.
Eu sobrevivi. Voltei. E falo.
Porque o silêncio é exatamente o que esperam de nós.
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