dezembro 29, 2025

A farsa islandesa (e como o país odeia estrangeiros)

 


A Islândia construiu uma das farsas morais mais bem-sucedidas do mundo contemporâneo. Um país pequeno, isolado, homogêneo, que aprendeu a vender sua própria clausura como virtude e sua exclusão como “harmonia social”. Para quem observa de fora, a Islândia é o paraíso progressista: igualdade, bem-estar, natureza intocada, felicidade medida por índices. Para quem tenta viver ali sem compartilhar do mesmo sangue, a Islândia é um sistema fechado, frio e impenetrável, onde a exclusão não precisa ser dita porque é estrutural.

A Islândia não é acolhedora. Ela é tolerante apenas enquanto você não ameaça o mito. Enquanto você é temporário, útil, exótico o suficiente para render histórias, mas descartável o bastante para nunca reivindicar pertencimento. O estrangeiro é bem-vindo como visitante, nunca como parte. O erro de quem tenta morar na Islândia é confundir educação com aceitação.

Desde o início, fica claro que a sociedade islandesa funciona como um clube hereditário. Não basta trabalhar, não basta falar a língua, não basta contribuir economicamente ou culturalmente. A linha que separa “nós” e “eles” não é social, é genealógica. Ou você descende de islandeses, ou você se casa com um islandês. Fora isso, você será sempre um útlendingur. Não importa quantos anos passem. Não importa o quanto você se adapte. A palavra não descreve apenas alguém de fora. Ela define um lugar fixo, do qual não se sai.

Durante minha experiência no país, isso se manifestava de forma constante, quase ritualística. Eu trabalhava, convivia, fazia amizades com outros estrangeiros vindos de todas as partes do mundo — Brasil, França, Finlândia, Japão, Espanha, Itália, Lituânia, Grécia. Entre nós havia troca, curiosidade, solidariedade. Entre os islandeses e nós, havia uma parede invisível. Eles falavam islandês apenas entre si, mesmo quando todos no ambiente eram capazes de compreender. Não por necessidade. Por escolha. A língua, ali, não era comunicação. Era instrumento de exclusão.

O fato de eu falar islandês, mesmo que de forma básica à época, causava espanto — não admiração genuína, mas um tipo de surpresa quase defensiva. Como se aquele conhecimento fosse uma invasão indevida. O elogio vinha carregado de estranhamento, nunca de convite. Era permitido saber, mas não pertencer. Era permitido imitar, mas não atravessar o limite simbólico.

A Islândia se orgulha de sua coesão social, mas essa coesão só existe porque o país se manteve pequeno, isolado e homogêneo por séculos. O que vendem como virtude é, na prática, endogamia cultural. A diversidade só é aceita enquanto não altera a estrutura. O estrangeiro pode circular, consumir, trabalhar temporariamente, mas jamais influenciar, jamais integrar, jamais se tornar islandês de fato.

Mesmo nas relações profissionais, isso se tornava evidente. Em reuniões de negócios no setor de turismo, eu era tratado não como parceiro, mas como alguém “tentando chegar lá”. Havia sempre um tom de condescendência, uma sensação clara de hierarquia moral. A Islândia se enxerga como centro ético, mesmo sendo periférica geograficamente. O estrangeiro do Sul Global, então, ocupa o degrau mais baixo dessa escada invisível. Não importa o quanto conheça o país. Não importa o quanto promova a imagem islandesa no exterior. O olhar nunca muda.

O discurso progressista islandês é profundamente seletivo. Ele funciona muito bem para consumo externo, para relatórios internacionais, para rankings de felicidade. Internamente, ele convive sem conflito algum com um nacionalismo silencioso, quase infantil, que acredita na própria superioridade cultural simplesmente por existir. Não há reflexão crítica. Não há culpa histórica. Não há questionamento. Há apenas a certeza confortável de que “funcionamos melhor do que os outros”.

E talvez funcione mesmo — desde que você seja islandês.

O erro de quem idealiza a Islândia é confundir bem-estar interno com ética universal. Um país pode tratar muito bem os seus e ainda assim ser profundamente excludente com quem vem de fora. A Islândia aperfeiçoou essa equação. Ela não agride. Ela não humilha abertamente. Ela simplesmente não deixa entrar. E depois se orgulha de não ter conflitos sociais.

Viver na Islândia como estrangeiro é viver em suspensão. Você nunca está realmente dentro. Nunca participa do todo. Nunca deixa de ser observado como corpo estranho. O país te permite existir, mas nunca te reconhece. E isso, com o tempo, se torna insuportável. Não é ódio explícito. É algo mais corrosivo: a certeza de que não importa o que você faça, não há futuro ali para você.

A Islândia não é o país perfeito.
Ela é um país fechado que aprendeu a vender fechamento como virtude.
É uma sociedade que só funciona porque não se mistura.
É um mito sustentado pela exclusão silenciosa.

Quem acredita no paraíso islandês geralmente nunca tentou morar lá sem sobrenome local, sem casamento estratégico e sem a disposição de aceitar que será sempre estrangeiro — mesmo depois de anos, mesmo depois de tudo.

A Islândia não falhou comigo.
Ela se revelou.

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