A Itália é talvez o país mais honesto da Europa apenas em uma coisa: ela nunca fingiu ser funcional. O problema é que o mundo inteiro resolveu fingir por ela. O cinema, a culinária, a arte, as ruínas, o mito da dolce vita criaram uma cortina espessa o suficiente para esconder uma realidade brutal: a Itália sobrevive do caos, da ilegalidade cotidiana e da humilhação sistemática de quem não nasceu ali.
A Itália não funciona. Ela opera. E operar é diferente de funcionar. Funcionar pressupõe regras claras, previsibilidade, direitos minimamente estáveis. Operar significa sobreviver à base de arranjos, favores, pagamentos por fora e silêncio cúmplice. Para o italiano, isso é normalidade. Para o estrangeiro, é um labirinto onde cada saída tem pedágio.
Cheguei à Itália num momento em que o mundo inteiro parecia ter parado, mas o velho vício italiano seguia intacto. A pandemia não criou a desorganização. Apenas retirou qualquer tentativa de disfarce. As repartições públicas continuavam abertas o suficiente para negar, fechar portas e empurrar pessoas para o desespero. Tudo era sempre “impossível”, “não agora”, “por causa da pandemia”. Até que, de repente, deixava de ser impossível — desde que se pagasse.
Na Itália, o suborno não é visto como crime. É visto como atalho. O funcionário público não se percebe como corrupto. Ele se vê como alguém oferecendo uma “solução”. O Estado italiano criou um sistema tão deliberadamente ineficiente que o pagamento por fora se tornou parte do mecanismo. Sem ele, nada anda. Com ele, tudo se resolve em minutos. Essa é a perversidade: o problema é fabricado para que a corrupção seja a resposta.
Na imigração, isso se torna obsceno. Você entra, pega senha, espera horas. Ou dias. Ou semanas. Sempre há um documento faltando. Sempre há uma assinatura ausente. Sempre há uma desculpa. O estrangeiro é mantido num limbo proposital, sem status definido, sem chão, sem futuro. Até que alguém, em voz baixa, oferece a chave: um nome, um balcão específico, um pagamento em dinheiro. O Estado italiano não se sente constrangido com isso. Ele normalizou o suborno como extensão do serviço público.
Pagar para existir legalmente em um país é uma forma sofisticada de violência. Você entende, naquele instante, que sua dignidade foi transformada em mercadoria. E que não pagar significa desaparecer administrativamente. A ilegalidade não é acidente. É método de controle.
A Itália não gosta de estrangeiros. Tolera-os enquanto úteis. A relação nunca é de igualdade. É de concessão temporária. O estrangeiro está sempre em dívida, sempre em avaliação, sempre a um passo da exclusão. O tratamento muda conforme a sua utilidade econômica. Quando o dinheiro acaba, a paciência termina.
O preconceito não é apenas institucional. Ele é cotidiano, banal, orgulhoso. O italiano médio não vê problema algum em humilhar. Ele não considera isso racismo. Considera sinceridade. O estrangeiro é visto como alguém que precisa “agradecer” por estar ali. Mesmo quando trabalha, mesmo quando paga impostos, mesmo quando consome, mesmo quando tenta se integrar.
A homofobia italiana é ainda mais cruel porque convive com uma imagem externa de tolerância. Fora dos grandes centros, ser gay é carregar um alvo invisível. Meu marido foi demitido por isso. Não por crise, não por desempenho, não por erro profissional. Por existir fora do padrão aceito. A empresa não teve pudor. Não teve receio legal. Sabia que nada aconteceria. E não aconteceu.
A Itália é um país onde o direito existe no papel e a prática o ignora sem culpa. A lei não protege. Ela serve de ornamento institucional para um cotidiano regido por relações pessoais, favores e dinheiro vivo. Quem não participa desse jogo é esmagado. Quem participa perde a dignidade aos poucos.
Durante o lockdown, isso se tornou ainda mais explícito. A polícia não estava ali para proteger. Estava ali para controlar, intimidar e selecionar. Cada esquina tinha vigilância. Cada saída precisava de justificativa. Mas, curiosamente, quem tinha os contatos certos circulava. Quem pagava, resolvia. Quem obedecia às regras, sofria. A pandemia escancarou o autoritarismo italiano travestido de ordem sanitária.
Viver mudando de cidade, de emprego, de promessa, é viver sem identidade. É existir como sombra. A Itália não oferece estabilidade ao estrangeiro. Oferece precariedade crônica. Você nunca sabe se amanhã poderá ficar. Nunca sabe se seu documento será aceito. Nunca sabe se alguém decidirá, arbitrariamente, que você não pertence mais.
A casa infestada de escorpiões não foi apenas uma situação absurda. Foi metáfora perfeita. A Itália te coloca em ambientes hostis e espera que você agradeça por estar ali. Reclamar é visto como ingratidão. Pedir solução é visto como abuso. O proprietário não se sente responsável. O Estado não intervém. O estrangeiro que se vire.
Quando os recursos acabam, a Itália não estende a mão. Ela vira o rosto. O sistema inteiro trabalha para empurrar o estrangeiro para fora sem assumir responsabilidade. Você não é oficialmente expulso. Você é consumido. Até não sobrar nada além da fuga.
Sair da Itália foi atravessar uma fronteira invisível entre sobrevivência e aniquilação. Foi entender que insistir significaria desaparecer. O país que o mundo ama romantizar mostrou sua face real: um lugar onde a ilegalidade é regra, o suborno é linguagem e o estrangeiro é descartável.
E quem insiste em chamá-la de civilizada precisa, antes, tentar existir ali sem sobrenome italiano, sem dinheiro sobrando e sem disposição para pagar pela própria dignidade.
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